Pandemia, Surto, Realidade: quando a ficha cai.
Mas, um mês depois, vendo as aulas digitais ampliando, talvez a escola mude. Mudar a escola significa alterar uma rede de aprendizagem, de sentido cujos efeitos são quase imediatos. Talvez essa mudança será o movimento de uma transformação. Vou me deter um pouco mais aqui porque é emblemático.
Se a escola avança, a sociedade caminha, mas quem impede os avanços da sociedade? Os conservadores. Estes desejam um mundo, um lugar de permanência, de constância, de estabilidade. Não sei se encontraremos. Esse momento é tão diferente, ou apresenta uma dialética tão esdrúxula que vanguardistas acabam guardando lugar de conservadores. Conservadores ganham o lugar de vanguardistas. Pensemos no caso de pais enlouquecidos com seus filhos em casa, ressignificando o papel de professores e da escola, mais daqueles do que desta. Na reflexão que eles fazem, eles trazem um lugar de avanço, de movimento. Por outro lado, as dificuldades enfrentadas por inúmeros professorxs sobre a criação de aulas virtuais, os colocam numa posição tradicionalista, que uma boa parte, nunca teve. Vejo colegas, inovadores, fazendo críticas severas (com razão) a essa forma e modalidade de ensino. No entanto, não deixa de ser curioso e sintomático desses lugares que vão se deslocando.
No Brasil que se tornou o palco desse pandemônio, temos um governo de extrema direita, realizando a maior distribuição de renda da nossa história. E, eles veem nessa prática uma vergonha, um ato comunista, socialista, que eles estão fazendo de tudo para dificultar. Por outro lado, a esquerda tem apoiado com grande ênfase medidas de restrição as liberdades individuais. Muitas bem mais próximas de uma liberdade econômica do que civil, todavia nos tornamos (esquerda) apoiadores de um Estado de restrição. O mundo está de pernas para o ar. A movimentação do mundo desloca as pessoas para posições que eram contrárias, dias antes.
Creio que não causa. Saturno nos leva em direção ao osso, ao cerne, ao tutano, vai rasgar a carne até chegar na dor e vai dizer: “sem choro, aguenta firme que é melhor”. Mas, isso não causa grito, lágrimas nos olhos. Saturno sabe o que fazer e como faz. O surto poderia ser atribuído a Plutão, mas o deus da invisibilidade, dos mundos infernais, apenas explode seus conteúdos mais profundos e segue a marcha. Estamos falando de uma combinação que nos leva ao encontro com a realidade, mas de repente, o real não está fora, a subjetividade ganha tutano e é projetada no outro, no mundo, ao redor, em toda parte. Para onde se olha se busca, se nega. O mundo vira um barril de pólvora. Todos prestes a explodir. Cada um vendo a realidade que se forjou, que dá conta de olhar, que consegue interpretar. O real sumiu.
O corona só ativou devaneios, insensibilidades, utopias, crueldades que possuíamos. Ele mesmo, o vírus mesmo, continua invisível como o elmo de Plutão. A marca fundamental do surto é que ele se vincula ao real. E não estou falando só do povo da carreata. Estou falando tbm do povo em isolamento. Cada um de nós em nossa realidade acreditando…. acreditando? No que acreditamos?
A invisibilidade do vírus escancarou uma realidade, uma concretude mundial, gigantesca, que pode ser sintetizada pelo colapso da economia e do sistema de saúde. De repente, tivemos que olhar para essa lógicas e as suas contradições.
Virei Kelsinnho paz e amor. Ali estava claro que a realidade tinha desaparecido. Nós não temos nada fixo, sólido, concreto para fixar o olhar. Ia cobrar o que e de quem?
Criticar quem pelo que? Uns olham a nuvem e veem mamadeira de piroca. Outros afirmam que não é mamadeira é pênis chinês que deseja inseminar o comunismo, outros veem Asthar Sheran, outras o Messias, seja ele Jesus ou bolsonaro, tudo igual. O que estamos vendo, não é mais o fato, a coisa. Vemos apenas o que colocamos lá. Interpretamos pela ótica de quem somos, sem nenhum anteparo, filtro entre o nosso olhar e a nossa forma de ser. Uma se torna a outra.
E, sem lidarmos com subjetividades atropelaremos o outro, ou seremos destruídos por narrativas selvagens e desumanas.
Nesse mundo de desencanto a imaginação coloniza e desterra a vida. Passa-se a ver em aulas panfletagem comunista, doutrinação, aliciamento sexual. A literatura vira devassidão, o cinema afronta, os artistas plásticos inimigos de Cristo. Nesse compasso apropriam-se da Bíblia, fazem da palavra sagrada sepulcro idolatra de falsos messias. Adversários políticos, ideológicos devem ser fuzilados, mandados para o paredão. Uns são vistos como gados, outros como equinos, mas em todos permanecem a desqualificação do outro como humano. Estou ouvindo alguns colegas falando das coisas, juntando os fatos, relacionando uma as outras, explicando a realidade e acabo relevando porque é um misto estranho entre a literalidade concreta com a imaginação delirante.
São construções sensacionais fossem ficção, fossem cinema, literatura. Como chaves de explicação e entendimento da realidade são pós-verdades perigosas, que estilhaçam ainda mais o espectro do real. O mais inusitado é que a maioria deles nunca se interessou por política, enquanto ela era desenvolvida no baixo nível que nos é habitual. O interesse deles veio quando trouxeram o ódio, os sentimentos mais perversos, as relações mais grotescas. Foi quase isso que os puxam para o engajamento, o submundo do submundo. E são esses aspectos plutônicos que vemos em disputa.
Talvez o lance seja esse, observar, silenciosamente, observar. Já que surtado é sempre o outro. Surtado é aquele que não percebe aquilo que não vemos. Perdemos as interpretações. Matamos as narrativas oníricas, poeticas, artísticas. O que sobra, ou o que vira é o deserto, o desterro. As certezas absolutas. Precisamos de arte, de filosofia.