AS SENHAS DOEU: imagens de nós mesmos.
Antes de ela ser ela mesma, Yves é uma imagem que a impede ou dificulta imensamente de ser ela mesma. E se por um lado, ela se idealiza, por outro, mas o mesmo lado, ela cria mecanismos para ser seduzida por sujeitos que acessam, justamente, essa projeção. Dá para entender o peteco? Um eu que cria tantas imagens de si mesma, que ora se perde nesses reflexos, ora fixa-se em uma ilusória?
Praticamente, ela não se relaciona com quem consegue de algum modo vê-la e percebê-la para além das projeções. Ela só se relaciona com aqueles que conseguem acessar a imagem delirante que ela faz de si mesma. Assim, o mais louco disso tudo é que por mais sofrível e sofredora que fosse essa projeção do outro, ou idealização de si mesma, ela estaria ligada a este amor, enquanto fosse alimentada. Poderia ser espancada, surrada, currada, maltratada, desprezada, humilhada, ela nunca veria isso, porque o cara de certa forma consegue acessar e alimentar essa projeção. Dá para entender?
O que fico observando é que algumas pessoas tem o dom de alimentar essa projeção, são os ‘hackers’, ou no linguajar popular: canalhas, malandros, vadias; enfim sedutores no sentido de manipuladores de desejos e vontades.
Enquanto a moça era atendida, especialmente, por Tranca-rua, via um monte de seres acorrentados- mulheres e homens. Era uma cena bem parecida com a imagem do arcano XV do Tarot de Marselha: O Diabo. O detalhe é que quando os olhavamos mais atentamente, nenhum deles tinha coração. Óbvio que essa é uma visão simbólica, que ele elucidou com uma inversão de uma passagem bíblica: “digas onde esta o teu coração e lhe direi onde esta o seu tesouro.” No caso, o tesouro delas estava na mão de outro, em posse de outro, e não foi feito grandes esforços para isso, muitas mulheres e alguns homens acreditam que amar é colocar o coração nas mãos do outro ser. Acreditam em um amor dramático, cheio de sacrifícios, cheio de privação e renúncia. É um amor pisciano no que esse apresenta relação com o cristianismo, ou seja, se não há sofrimento não há amor. Ou mais complexo ainda- amar é sofrer, doer, sacrificar-se. Todo esse cenário dramático que vemos em toda parte: religião, jornal, teatro, novela, música, escola, na vida de forma geral em que poucos buscam uma relação amorosa mais saudável e salutar.
O que achei deveras curioso é que mais do que uma decodificação errônea, a bem da verdade, é que havia um jogo perigoso, intrigante nessa cena. Quando se dá a senha/coração, a pessoa implicitamente esta dizendo que somos obrigados a recebê-la, a aceitá-lo. Não dá para discutir isso sem retomar a proto-idéia de onde isso sai, a saber, a entrega de Deus do seu único filho para salvar a humanidade e a humanidade cruel mata a ovelha sagrada. Há desde então uma desonra moral em não amar o outro. Acreditamos que no amor o coração tem que ser dado, mais precisamente doado ao outro. O verdadeiro amor é aquele que abdica do seu próprio coração. Nós vemos essas relações trágicas entre pais e filhos, namorados, seitas. Poucos compreendem que é o amor e não o coração que deve ser compartilhado.
Quando dou meu coração ao outro transponho e transfiro a responsabilidade que tenho de cuidar de mim mesmo para o outro, renuncio e entrego minha responsabilidade de crescimento e amadurecimento para que o outro cuide de mim. No final, posso cobrar do outro um preço mais caro, um preço que o amor não pede e nem cobra: o da culpa. Culpar o outro por nossa falta de coragem, pelo nosso não posicionamento é um ponto marcante dos relacionamentos. Um ponto marcante que pode ser acompanhado tanto por marcados internos, quanto que por marcadores externos.
Os marcadores internos vão sinalizando um jogo doentio que vai virando de patológico, até se transformar em obsessivo e culminar em ódio o que acaba por deflagar o ponto visível do marcador externo que é o homicido, não sem antes sinalizar pequenas e corriqueiras violências simbólicas.
Eu que considerava Yves vítima fui convidado a analisar a situação mais de perto. E a percepção virótica veio quando o amigo Exu pergunta a ela se ela gostaria de libertar e libertar-se do cara. Ela diz que não. Percebi que mais do que uma escravidão o que existia era uma servidão voluntária. Uma servidão que colocava o outro na condição de canalha, de carrasco, quando na verdade, a manipuladora era Yves. Ou melhor, não existiria nem inocentes, nem culpados, mas uma relação que se desenvolve de forma que ela se machuca, mas tem um prazer nessa dor. Um prazer de se ver e se manter acorrentada aos pés do seu amado. O importante a frisar é que a libertação disso se faz de forma simples, cada um retirando o seu coração das mãos das outras pessoas.
Olha a sua volta, se o seu coração não estiver com você e em você, provavelmente, alguém tem a sua senha.