SER ou mudar? VIR A SER ou permanecer?
O ser e o vir a ser são discussões constantes e incessantes do nosso universo. Os gregos imortalizaram essa dinâmica nas concepções dos pré-socráticos Parmênides de Eleia e Heráclito de Éfeso. Para o primeiro o ser é eterno, imutável, perene. Já o segundo dizia que tudo flui, tudo muda, que não nos banhamos duas vezes nas águas de um mesmo rio. A conciliação desses estados de coisas será dada séculos mais tarde com Platão ao falar de mundo sensível e mundo das ideias. No mundo das ideias o ser existiria em estado de permanência e imutabilidade.
Poucos quilômetros da Grécia os sábios falavam de dois princípios antagônicos e complementares: o Yin e o Yang. Duas polaridades opostas que movimentavam todo o cosmos, porém diferente dos gregos, eles reconheciam esses movimentos apenas como a moldura do Tao. O Tao seria o principio universal que em si mesmo comportaria a dinâmica dos contrários, ou seja, é no fluir dos contrários, é na dinâmica dos opostos que se encontra o equilíbrio.
Para não morrer, para perdurar uma vida que se recusa em mudar, criamos artifícios cruéis de uma eterna juventude estampada em todos os conceitos e mentes. Nada escapa a eterna tentativa de vender a vida como perene e constante e diante dela não sabemos como lidar com as dores, as frustrações, as decepções, as ilusões e desilusões de quem vê a vida, mesmo que apartada, esterilizada, pasteurizada insistir nos seus arroubos de soluço. Dráculas, vampiros, Barbies são a mostra desse nosso sonho de eternidade. Uma eternidade sem morte, consequentemente desprovida do sentido profundo da vida. A rosa que não murcha é de plástico. Artificial, como o corpo que não envelhece. Automático como a máquina programada em modo perpetuo.
Nesse mecanicismo reducionista, como lidar com a doença? Com o envelhecimento? Com a impotência? Com a depressão? O que fazer quando as pílulas mágicas da eterna novidade não mais conseguem suplantar as dores da alma que parece querer, unicamente, alento e contato com a vida? O que fazer diante da entropia que nos desgasta? O que fazer diante das mudanças?
Somos convidados a resistir, a iludir, a não aceitar, a não sucumbir. Instaurando uma lógica que diz mais ou menos assim:
morra, mas não adoeça. Adoeça, mas não envelheça.
Nessa lógica, num sentido mais huxeliano, nada mais antinatural do que a alma e a vida. Nada mais antinatural do que o desejo da alma em gozar sem pílula, viver sem mascara, dormir sem comprimido, sofrer sem medicação, simplesmente doer e permitir que a vida rasgue a carne para libertar a alma de estranhos conceitos e ilusões como o de que o corpo é sempre jovem.
Desenhamos um mundo cinza no qual somos substituídos automaticamente, mesmo com plena condição de realização e potência. Enfim, temos pressa, alteramos nosso entendimento do tempo e não conseguimos conciliar o ser e o vir a ser. Entre ejaculação precoce e a impotência vende-se a ilusão de orgasmos múltiplos constantes e eternos, altamente potentes para todos. O prazer incessante que não nos deixa o sentimento da morte, nem o tédio. Diante da fome e da ânsia infinita, um novo orgasmo ainda não é a satisfação, e outro, e mais um, e outro, múltiplos e sequenciais para que até o próprio orgasmo não se faça êxtase, calma, completude, silêncio, espera, recomeço. Morte! Goza-se pela força ejaculatória sem relação com o prazer, sem o sentido do fazer. Tudo é automático e sem automatismo pouco se faz. E em nossos afazares ocupamos todos os espaços, todas as brechas, todos os hiatos para que a mudança não adentre nossa vida.
Ainda não encontrei quem diante das mudanças, simplesmente muda, altera, caminha, prospera com a aceitação do fluir. Os coachs que tem arrastado milhares de pessoas como casos de sucesso são os que abraçaram as mudanças da vida deles e agora ensinam as pessoas a mudarem. A grande tônica dos treinamentos é essa: mude!
O outro lado dos treinamentos é que estamos socialmente tão endurecidos que necessitamos de profissionais que nos ensinem a mudar. Isso é bem diferente e novo. Se é um avanço ou se um retrocesso não me atrevo a analisar e muito menos julgar. Considero ser algo diferente, já que anos atrás os profissionais dessas áreas auxiliavam as pessoas a lidar com a mudança. Os pajés, os xamãs ensinavam as pessoas a aceitar a mudança como uma parte natural da vida, por consequência de si mesmo. Os psicólogos e terapeutas buscavam ou buscam assinalar uma conformidade, uma adaptação entre a mudança externa e a interna. Hoje, há uma antecipação, ensina-se e prepara-se para mudar. São novos tempos e também um novo mercado, cuja lógica é para muitos a do capital. Muda-se para continuar sendo o melhor sucedido. Poucos mudam para ser feliz ou se aproximar da própria felicidade. Muda-se para se adaptar a uma sociedade cuja lógica é a conquista, a luta, a batalha, a guerra, a superação, o topo, o auge, o ápice. A sociedade sem pausa, sem descanso, sem repouso, sem alma, sem vida. A sociedade que acredita que o prazer é sentir prazer e encontrar prazeres cada vez maiores, mas nunca satisfazê-los, nunca senti-los, nunca gozá-los.
Sabe o marido que troca o sofá a cada traição. A esposa que troca o filho de escola a cada reprovação. O cara que muda de emprego a cada dois meses. A outra que faz uma tatuagem a cada ano. O outro que coloca o piercing, ou ainda a que entra no bisturi para esticar uma parte do corpo. Todos mudam, mas poucos fazem a transformação.
A transformação é um ato de coragem, um ato final, muito próximo a morte. Muito próximo a essa barreira do indefinível que não se sabe o que será, nem no que vai dar. A lavra não sabe do seu processo quando entra no casulo. E se tivesse um coach, ou um personal lhe dizendo, também não serviria. O caminho da transformação é pessoal. É o encontro nosso com a gente. É aquele ato, que você sabe que tem que fazer e só você pode realizar. É a sua plenitude. É o seu estar inteiro no processo. É aquela certeza que a vida lhe dá, com a coragem que a vida não lhe dá e depende de você o passo, a decisão. Pelo menos até o momento no qual a vida escolhe e decide pela gente sem nos deixar nada, a não ser o essencial. Em outros termos, a tristeza maldita é que o processo de transformação é solitário como ser enterrado vivo. E, até em nosso processo de mudança a gente espera e busca um controle, um planejamento, um staff, uma mudança televisionada com direito a self de dentro do casulo. Perdoem-me, pelo menos no que se refere a jornada espiritual, que é a jornada da alma rumo a conquista da vida, isso não se dá dessa forma. Conquista que se faz, que se calcula, que se estipula não pela conta bancária e sim pelo índice interno de satisfação pessoal.
E, nisso faço uma última digressão. Eu estava meio motivado com essa ideia de crescimento, expansão, quando escuto uma mulher que amo muito e respeito demais fazendo as contas na planilha, se valia a pena crescer, expandir. Olhei para ela com um olhar curioso, porque na lógica é o que todos querem: crescer, expandir. E ela destacava o preço disso. Preço não apenas no quesito econômico e sim no de valor. E, na análise dela permanecer uma empresa de pequeno porte era mais interessante. Não lhe deram ouvidos, afinal quem escuta uma mulher, pedagoga, na vida? Num escritório de engenharia?
Porém, esse ensinamento suscitou uma pergunta que acho pertinente e relevante por vários outros ensinamentos recebidos ao longo da vida: até onde eu vou? Qual é o ponto que estabelecerei como limite? 51 milhões numa mala? Três helicópteros, um jatinho particular e dois iates? Um milhão de reais? Dez seguidores no instagram? Trinta amigos no face? Um show para cem pessoas? Um show para um estádio lotado? Onde eu paro para não me perder?
Parece ser importante saber isso para não nos perdermos, não nos desviarmos da nossa essência. Não desejarmos ultrapassar o intransponível. Não nos cegarmos e aquilo que era a nossa forma de prazer se tornar em nosso martírio.
E diante dela tudo, absolutamente, a não ser o que se faz intrinsecamente essencial é desnecessário. E aceitar esse confronto de ter a vida em sua inteireza e naturalidade como parceira é de fundamental importância em oposição a uma lógica que nem dor de cabeça nos permitimos sentir, o que dizer da angustia da morte. Se apartamos de nosso convívio todos os que sentem, como permitiremos que os portadores de sofrimento mental venha nos lembrar, sem medicação, que estamos adoecidos. Nossa lógica existencial não resiste ‘ao contato furioso da existência’, quiçá consegue suportar as mãos de uma criança.
Viver é abraçar a mudança para que ela nos transforme no que temos e somos de melhor. E, quem acredita que pode resistir a isso, ainda não entendeu o fluir dos contrários, a perene segurança do Tao diante do caos das transformações. E não estou falando de mudar para transformar. Estou falando de transformar para que talvez não seja preciso mais nenhuma outra mudança.
Como salientamos, muitos mudam de cabelo, de bairro, de casa, de amante, de amigo, de bar, de cerveja, de time para não realizar a transformação que é necessária. Acreditam que mudando sem metamorfosear, enganam a vida, o viver. E está na sua sarça ardente apenas acompanha até que lança seu bafo que chega aos homens em forma de sofrimento, de agonia e morte. É esse aguilhão que desperta o transmorfo da sua laicidade. É esse aguilhão que acorda o ser para o encontro com o seu ser (vir a ser).
Parece que antes da dor ninguém se põe autenticamente ao caminho e a caminhar. Parece que antes da finitude, poucos situam que o inevitável não avisa, apenas chega e altera. Nada mais será como antes e não há ponto de restauração no sistema. A vida formata nossas lógicas radicalmente. Continuamos utilizando o mesmo corpo, a mesma máquina, mas as operações terão que ser outras, ressignificadas, reeditadas, configuradas para uma nova realidade.
Mu-dadas.
Trans-forma-das.